Programa E-Lar: as contradições e o risco para as famílias

O programa E-Lar promete tornar as casas mais eficientes e apoiar as famílias na substituição de equipamentos a gás por elétricos. Mas será que cumpre realmente os objetivos de reduzir custos e aumentar o conforto?

Programa E-Lar: Riscos para as famílias em Portugal

No passado mês de Julho, foi amplamente noticiado na comunicação social o lançamento de uma nova fase do programa E-Lar. Este artigo analisa os riscos do programa, os impactos na fatura de energia, no conforto das habitações e na rede elétrica nacional, e sugere caminhos mais equilibrados para descarbonizar sem penalizar famílias.

O que é o programa E-Lar?

Este é um programa subsidiado pelo Fundo Ambiental, que tem como objetivo “tornar as casas mais eficientes”. Para este efeito, o programa consiste na disponibilização de vales digitais para substituir fogões, fornos e esquentadores a gás por versões elétricas, com apoios que chegam a 1.683 euros (famílias vulneráveis) e 1.100 euros (restantes). 

Uma consulta rápida à página deste programa no site do Fundo Ambiental permite identificar o primeiro objetivo específico do programa: “Reforçar o combate à pobreza energética e promover o conforto térmico das habitações.”

Eis as principais razões que me levam a considerar que este programa falha redondamente no cumprimento deste objetivo:

  1. A substituição dos equipamentos a Gás Natural por elétricos irá, na grande maioria dos casos, gerar um aumento significativo da fatura de energia;

  2. Em muitos casos irá diminuir a comodidade e o conforto térmico;

  3. Não tem em consideração a realidade das habitações em Portugal;

  4. Irá criar ainda mais pressão na rede elétrica nacional, que já hoje tem dificuldade em responder a todas as necessidades;

1. Aumento da fatura de energia

Vamos fazer um exercício simples, tendo como referência uma família de 4 pessoas:

  1. Segundo o simulador da Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos (ERSE), uma família de 4 pessoas em Portugal tem um consumo médio de Gás Natural equivalente a 3.407 kWh;

  2. Segundo o mesmo simulador, esse consumo tem um custo anual de cerca de 366 euros no Comercializador de Último Recurso de Gás Natural;

  3. Em comparação, esta mesma quantidade de energia em eletricidade terá um custo de 819 euros, se considerarmos os valores praticados pelos maiores comercializadores de eletricidade; 

  4. Isto significa que, com a substituição dos atuais equipamentos a Gás Natural por eletrodomésticos, estas famílias irão ver as suas faturas de energia crescer em +125%!

Consumo anual de Gás Natural vs. outras fontes de energia (4 pessoas)Fig. 1 - Consumo anual de Gás Natural vs. outras fontes de energia (família de 4 pessoas)

 

Diferença de eficiência não compensa o aumento de custo

Mesmo considerando a diferença de eficiência de rendimento dos equipamentos a gás versus eletrodomésticos, que em alguns casos é verdadeiramente residual, é evidente que as famílias portuguesas irão passar a pagar muito mais pelos seus consumos de energia.

Por exemplo:

Um esquentador pode ter uma eficiência de 85% a 88% e um termoacumulador elétrico tem uma eficiência de 90%.

Pode ser necessário aumentar a potência contratada

Adicionalmente, esta substituição dos equipamentos a gás por eletrodomésticos poderá implicar a necessidade de aumento da potência elétrica contratada na residência, o que trará um custo mensal adicional. 

Existem diferenças no tempo de vida e manutenções

Acresce ainda que um esquentador a gás tem um tempo médio de vida estimado de cerca de 25 anos, com uma manutenção recomendada de 10 em 10 anos, enquanto um termoacumulador elétrico, por funcionar com depósito de água, precisa de manutenção de 2 em 2 anos e tem um tempo médio de vida de 15 anos.

Pelas razões apresentadas, é praticamente certo que, caso optes pela substituição dos teus equipamentos a Gás Natural por eletrodomésticos, a tua fatura de energia irá aumentar de forma considerável.

Comparação do custo anual de energia para os banhos (4 pessoas)Fig. 2 – Comparação do custo anual de energia para os banhos de uma família de 4 pessoas

2. Comodidade e conforto térmico podem ser prejudicados

Um dos principais constrangimentos apontados por consumidores que utilizam um termoacumulador elétrico (também conhecido por cilindro) é o facto de ser mais desafiante a gestão de todos os banhos da família, devido à limitação da água quente

Isto porque, ao contrário de um esquentador a Gás Natural, que disponibiliza água quente de forma instantânea e sem limitações, um termoacumulador elétrico tem um depósito de água com um volume finito. Esta água é mantida quente mesmo quando ninguém está a utilizar, mas depois vai-se esvaziando com a utilização da água quente. 

O que muitas vezes acontece é que as últimas pessoas a tomarem banho num curto espaço de tempo vêem a água quente terminar, o que obriga a esperar que esta aqueça novamente no depósito do termoacumulador antes de continuar a utilizar.

Como referência de cálculo, um duche de 8 min gasta em média 50 litros de água quente. 

Só um esquentador a Gás Natural assegura água quente de forma instantânea, sem interrupções e sem limites, assegurando o conforto de toda a família. 

3. Limitações do parque habitacional português

No norte da Europa, fruto dos invernos rigorosos e de a grande maioria das casas ter grandes consumos de energia com sistemas de aquecimento central, tem sido promovida a substituição de caldeiras a gás por bombas de calor. Estes equipamentos têm grande eficiência energética, mas exigem muito espaço (pela sua dimensão) e requisitos de instalação mais complexos.

A grande diferença é que Portugal tem um parque habitacional muito distinto dos países mais a norte da Europa, tanto na sua configuração como nos seus equipamentos. Na Europa, o equipamento mais comum é a caldeira a gás, que serve tanto para o aquecimento de águas como para o aquecimento ambiente, maioritariamente através de sistemas centralizados. Já em Portugal este aparelho tem uma expressão residual, sendo o esquentador o principal aparelho instalado e com o objetivo único de aquecimento das águas sanitárias.

Por esta razão, a grande maioria das habitações em Portugal, especialmente em centros urbanos, não tem as condições adequadas para a instalação de bombas de calor (que tem uma dimensão semelhante a um frigorífico). Isto levará naturalmente os consumidores a optarem por outras soluções elétricas, menos eficientes, como os termoacumuladores, levando por isso a maiores consumos de energia do que o idealizado com estas medidas.  

Para termos uma ideia mais clara sobre a diferença de dimensão dos equipamentos:

  • Um termoacumulador de 120 litros (mínimo adequado para uma família de 4 pessoas) ocupa 4 vezes mais espaço (volume) que um esquentador a Gás Natural de 11 litros;

  • Uma bomba de calor ocupa 9 vezes mais espaço que um esquentador a Gás Natural de 11 litros.

Floene: Comparação de volume de espaço dos equipamentosFig. 3 – Comparação de volume de espaço dos equipamentos

Fica assim evidente que a visão de eletrificação do segmento doméstico ignora por completo a realidade habitacional do país.

4. Mais pressão na rede elétrica, que já está em esforço 

O Relatório de Monitorização da Segurança de Abastecimento do Sistema Elétrico Nacional para o período 2025‑2040 é um documento técnico anual, elaborado pela Direção‑Geral de Energia e Geologia, com base em contributos da REN – Redes Energéticas Nacionais.

Neste relatório, é já evidente que a crescente procura de soluções de carregamento para a mobilidade e introdução de bombas de calor têm trazido uma pressão relevante sobre a atual rede. Por esta razão, começam a surgir cada vez mais alertas para a necessidade de fazer investimentos avultados no reforço da rede elétrica nacional

Forçar a passagem dos atuais consumidores de gás natural do segmento doméstico para elétrico agrava o risco e pode traduzir-se em mais interrupções locais e piores níveis de qualidade de serviço.

Em contraponto, a atual rede nacional de gás está já preparada para receber e distribuir os gases renováveis, como o Biometano e o Hidrogénio Verde, sem necessidade de investimentos relevantes ou custos adicionais para as famílias. 

Faz sentido abdicar de um ativo do Estado Português (a rede nacional de gás) que está em perfeitas condições para assegurar a transição energética e a respetiva descarbonização dos consumos, para ter de ir fazer investimentos elevadíssimos para reforçar uma outra rede energética? 

Faz sentido centralizar o consumo energético em apenas uma solução, ficando assim totalmente dependente da mesma? Não aprendemos nada com o apagão geral de Abril 2025?

E-Lar não cumpre os objetivos de combate à pobreza energética

Pelos vários argumentos apresentados, a configuração do programa E-Lar está longe de cumprir o seu propósito e ser uma ferramenta relevante no combate à pobreza energética e um estímulo à transição energética. Do meu ponto de vista, este deve ser feito através de:

  • disponibilizar as soluções de energia mais competitivas para as famílias e empresas;

  • preparar melhor os edifícios em termos de eficiência térmica e energética;

  • otimizar os atuais recursos e ativos disponíveis;

  • estimular o desenvolvimento das energias de futuro mais adequadas para as reais necessidades;

  • assegurar soluções complementares, promovendo uma maior resiliência e autonomia energética;

  • promover a literacia energética junto da população.

Descarbonizar sem penalizar famílias: Biometano já

Compreendendo o propósito nobre e urgente de promover a descarbonização dos consumos de energia do segmento doméstico. A discordância está na estratégia de eletrificação total e na eleição do E-Lar como mecanismo para atingir este objetivo.

Isto porque o Biometano é um gás 100% renovável que pode ser injetado já hoje na atual rede nacional de gás e descarbonizar desta forma uma parte relevante do consumo de energia do segmento doméstico, sem obras em casa, troca de equipamentos ou investimentos pesados na rede de gás

Por esta razão, vários países europeus têm apostado forte no desenvolvimento desta solução e Portugal tem todas as condições para seguir também este caminho. 

O Plano de Ação para o Biometano 2024-2040 define metas e instrumentos para escalar produção e injeção. Contudo, apesar da publicação deste Plano em Março 2024, continuamos a aguardar o lançamento de medidas concretas que estimulem o desenvolvimento de projetos, nomeadamente em questões como agilização de licenciamentos, mecanismos de apoio à produção ou estabilização de preços. É aqui que o Governo deverá concentrar o foco.

Exceções sensatas

A substituição de equipamentos a gás butano/propano por soluções elétricas eficientes pode fazer sentido em localidades que estão afastadas da rede nacional de gás e que não beneficiarão do acesso ao Gás Natural ou Gases Renováveis. 

Aqui sim, faz sentido o programa E-Lar, sobretudo se acompanhado de apoios à reabilitação energética dos edifícios. 

Mas transformar essa exceção em regra nacional é caro, ineficiente e arriscado para o sistema energético.

O que deveria ser feito

  1. Recentrar o E-Lar: admitir tecnologias a Gás Natural / Gases Renováveis eficientes como alternativas elegíveis (ex. esquentadores de elevado rendimento);

  2. Priorizar Eficiência: canalizar parte do orçamento para janelas, isolamento e combate a infiltrações;

  3. Acelerar Biometano: operacionalizar rapidamente os instrumentos do PAB e metas de injeção;

A boa política energética protege as famílias no bolso, garante conforto, defende a resiliência da rede e reduz emissões sem “trocas cegas”. Em Portugal, isso significa assegurar o acesso ao Gás Natural hoje e aos gases renováveis amanhã.


André Rocha
André Emanuel da Costa Rocha
Diretor de Marketing da Floene Energia